sexta-feira, 19 de abril de 2024

A sopa de Mirabeau em Garanhuns


Marcílio Reinaux*

Nos dois últimos anos da década de 50, pelos idos de 1958 e 59, tive oportunidade, na condição de empregado da CHESF, trabalhar por vários meses em Garanhuns. A Companhia através do seu Departamento Jurídico, à época chefiado pelo Doutor Ebenezer Gueiros, irmão do médico Othoniel Gueiros, ambos de saudosa memória, montara em Garanhuns um pequeno escritório de apoio aos trabalhos de legalização de terras desapropriadas para dar passagem aos eletrodutos. As linhas  espichavam-se de Paulo Afonso por todo o Nordeste e uma delas passando por Garanhuns, bifurcava-se na grande subestação de Angelim, prosseguia uma para Campina Grande a outra para Recife. Subiam e desciam serras, cortavam os agrestes, a caatinga e rasgavam os espaços levando a energia que gerou riquezas e transformou a fisionomia da Região e do povo. 

O ano de 1958 assinalava o décimo da CHESF e a concessão para a legalização das terras pelas quais as linhas passavam, terminaria em março de 1959. Urgia portanto legalizar as glebas. O trabalho já vinha sendo realizado  há muitos anos pelo escritório do conhecido Advogado Urbano Vitalino de Melo, respeitado de nossa terra que aqui militou quase meio século. Mas o volume das escrituras era muito grande e com prazo exíguo justificou-se a criação do Escritório Volante Jurídico como ficou sendo chamado, quando em diversas pontos dos Estados do Nordeste. Vários anos de luta, pioneirismo e desprendimento. Uma epopeia que merece ser lembrada.

As tarefas com legalização das terras com levantamento de Memorial Descritivo, lavratura de escrituras, pagamentos, providências relacionadas com Testamentos, Formal de Partilha e muitas outras eram confiadas a uma afinada equipe chefiada pelo advogado paraibano Nicodemos Lopes Pereira. Cabra macho da peste. Juntou o grupo recebeu todo apoio do doutor Gueiros e "rasgou" a caatinga em lombo de jumento, de cavalo e depois em vários jeepes. Uma luta dos seiscentos diabos. Foi assim  com muita garra, muita determinação e sacrifícios insanos que Nicodemos e aquela equipe realizaram uma verdadeira proeza, em poucos meses lavraram mais de mil escrituras em centenas de Cartórios diferentes pelas cidades afora, em Garanhuns, o "quartel-general" funcionava a todo vapor dando o apoio necessário. Faziam parte da equipe: os advogados Valdi Batista da Mata, que veio morar em Garanhuns, João Cruz de Oliveira, Petrarca Francisco Gondra, Juarez de Paiva Macedo e mais os auxiliares de advogado: Pacífico Lira de Carvalho. Odack Florêncio da Gama e o subscritor destas linhas. Mais adiante juntou-se ao nosso grupo um gordinho chamado Eraldo, vindo também da Paraíba. Logo tornou-se advogado da Empresa.

Ficamos instalados em um prédio de dois pavimentos, na avenida Santo Antônio, vizinho ao médico Doutor Couto ainda jovem e segundo não falha a memória, ainda solteiro. Acabara de chegar a Garanhuns. Moço distinto e simpático, que vindo de fora conseguiu angariar amigos e aqui fincou raízes, constituiu família e amealhou muitos bens. Tornou-se o doutor Couto, e isso ninguém há de negar, uma espécie de patrimônio de Garanhuns, com o seu consultório, a farmácia e as suas atenções de competente profissional em favor do povo.

A época existia na rua do Correio (não sei o nome da rua) na esquina em frente ao então Cine Jardim, uma pequena lanchonete nominada ou com o proprietário chamado Mirabeau. Fornecia lanches e refeições rápidas. Uma espécie de "come-em-pé" bem frequentado. Lá fui poucas vezes porque em Garanhuns, hospedava-me em casa da irmã Alcione Reinaux Maia, esposa de Pedro Maia, funcionário do Imposto de Renda. Mas mesmo indo pouco ao "Mirabeau" encontrava-me com Eraldo um assíduo frequentador. Com ele viajávamos para   as "faixas" na luta pela legalização das terras.

O Mirabeau estava sempre cheio de gente simples, trabalhadores, vadios. O Eraldo ali dentro em um banquinho pelas seis da matina à espera do café. Havia de tudo na casa: cuscuz, macaxeira com carne de sol, leite, batata doce e tudo de comida caseira cheirosa e gostosa. De repente um grito: "Sai uma papa, depressa o rapaz vai para a faixa". Dizia o dono botando a cabeça no buraco que dava para a cozinha. E completava: "Sai um pão-na-serra com manteiga e um pingado". Era o desjejum do Eraldo que morava numa pensãozinha qualquer o comia no Mirabeau.

Não sei se ainda hoje existe em Garanhuns o Mirabeau. Mas ele ficou famoso. Pelo menos com o pessoal da CHESF. Motorista como "Patu" o Zé Paulinho, o "Maninho", o Norberto ficaram fregueses. E mais o Pacífico e o Odack eram frequentadores. Valdi, advogado ia poucas vezes. Mas o Eraldo não perdia o café, nem a janta. Janta caseira mesmo e noite a dentro, ouvia-se o Mirabeau gritar. "Sai uma sopa, depressa o rapaz veio da faixa". E  completava: "Pão-na-serra", café grande. As vezes o Mirabeau perguntava a Eraldo: "Sopa com Jeep ou sem? "jeep" era um osso grande que o dono mandava colocar na sopa a pedido ou não do freguês. Um corre-corre uma agitação, o Mirabeau com o pessoal da CHESF na "boquinha" da noite. Depois o cinema Jardim ali juntinho, de preferência no final da semana.

Assim ficou na lembrança o agradável companheirismo dos amigos da CHESF dos gritos do solicito Mirabeau, das gaiatices dos motoristas, dos olhares desconfiados dos outros frequentadores e enfim de uma Garanhuns saudosista de tempos que já longe vão, o tempo da sopa do Mirabeau.

*Jornalista, escritor, pintor e professor / Recife - 1989.

Foto: Mirabeau Machado Pinto e Zenaide Barbosa.

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