segunda-feira, 6 de maio de 2024

Recife em 1960

Souto Dourado

Luiz Souto Dourado*

O Recife cresceu muito e muito penou na década de 1960. Administra esta cidade é, antes de tudo, saber lidar com a água e a terra, saber domo dosá-las, promovendo a sua conciliação, evitando os seus conflitos. Em princípio, é realizar um trabalho de artesão pobre mas imaginoso, um trabalho de modelagem, sabendo tirar da terra e da água os elementos  necessários; depois, é fazer uma espécie de mutirão, reunindo esforços e recursos para o bem comum. Foi justamente o que fez em 1960 o prefeito Miguel Arraes.

Com a terra alargou a Rua da Aurora, fazendo a sua ligação com a Avenida Norte. Sobre as águas, fez surgir a Ponte do Limoeiro, "projetada e mandada construir por Arraes", segundo o escritor Paulo Cavalcanti. Abria-se assim um novo caminho para o mar; cumpria-se a vocação do Recife, não mais em direção às antigas praias do Forte do Brum, porém a que levava o recifense dos bairros mais pobres da Zona Norte às mais movimentadas praias do zona Sul, sem passar pelo centro da cidade.

Ao mesmo tempo, Arraes organizou um mutirão entre os proprietários de Boa Viagem com o interessante Plano de Urbanização daquele bairro, pavimentando parte da avenida à beira-mar e muitas outras avenidas e ruas. Preparou por assim dizer Boa Viagem para o desenvolvimento de hoje. Por outro lado, estendia os trabalhos a Imbiribeira, concretando a sua principal avenida - hoje Mascarenhas de Moraes - que leva ao aeroporto dos Guararapes.

Com Arraes, surgiu um outro mutirão tão importante como o das obras em Boa Viagem: o mutirão do Movimento de Cultura Popular, onde reuniu intelectuais, artistas e professores - inclusive Paulo Freire, cujo método é hoje conhecido e aplicado internacionalmente - empenhados todos num extraordinários plano de alfabetização de adultos.

O Recife crescia naquela década, com duas estações de televisão, com a Sudene funcionando, com a Companhia Telefônica aumentando consideravelmente as suas linhas, com os grandes edifícios surgindo na Avenida Boa Viagem.

Mas, por outro lado, apareceram no Recife novos hábitos de comportamento. Como já foi dito, o automóvel fizera a família sair de casa enquanto a televisão a trouxera de volta. Não para conversar como antigamente mas para assistir aos seus programas e - pior ainda - para afastar as visitas, que hoje já não podem aparecer durante as horas do Jornal Nacional e da novela preferida. Na verdade, hora de visita não tem mais hora...

Em 1962, vencia-se o contrato com a Pernambuco Tramways para o serviço de bondes no Recife devendo reverter ao Estado todo o acervo da concessionária ou justa indenização. Aquela altura, os bondes praticamente já haviam desaparecido da cidade: haviam sido atingidos pela aposentadoria contratual e descansavam em várias garagens. Tinham tido como companheiros ou concorrentes ônibus de diversas empresas, inclusive a Pernambuco Autoviária, fundada pelo dinamismo de Vivi Menezes.

Quem da nossa geração pode esquecer os bondes, que diminuíam gentilmente a marcha ao chegar próximo à Faculdade de Direito, na Praça Adolfo Cirne, ou à Faculdade de Medicina, no Derby? Nem por isso os estudantes deixaram de desligar a "banana" do fio elétrico. Era a graça sempre repetida e para eles sempre engraçada de quem tinha tempo e mocidade para fazer graça. Quem tinha talento e inspiração, como Capiba - hoje glorioso nos seus 80 anos - fazia música, como aquela que dizia que "quem vai para Farol é o Bode de Olinda", pois "essa história de mentir, meu bem, não convém, viaje ao menos de loré (carro de segunda, atrelado ao bonde).

E agora falando sério, ainda de bonde, por onde anda, quem viu, quem sabe do acervo de Pernambuco Tramways? Houve quem reclamasse pela sua indenização na Assembleia Legislativa, mas perdeu o seu tempo. No vácuo do movimento revolucionário de 1964, o Governo Federal apressou-se em comprar as empresas do Grupo "Amforp" e na transação teria entrado o acervo da Pernambuco Tramways. O Governo era forte e Pernambuco, com seus governadores nomeados, fraco. Perdemos os bondes, o acervo e a indenização. As mãos e os anéis. Como lembrança, foi visto um na Rua da Aurora, outro no Sport Club do Recife, e ainda outro no Parque Euclides Dourado, em Garanhuns. Somente das cadeiras dos bondes se tem notícia certa: foram em boa hora doadas pelo ex-governador Nilo Coelho ao Centro Cultural daquela cidade, e lá estão.

O bonde, que durante 50 anos se incorporou à paisagem e a vida do Recife, cederia oficialmente em 1961 o seu lugar ao ônibus elétrico na administração Miguel Arraes, se bem que Pelópidas Silveira - recebera o plano de José do Rego Maciel - já tivesse adquirido algumas unidades. O bonde, da paisagem viva desta cidade ("em cada poste uma esperança de bonde", como escreveu Rubem Braga) passaria a trafegar apenas na memória de muitos dos seus passageiros, como veículo que transportava também os melhores sonhos de cada, a doer como aquela "fotografia na parede", em que se transformou. (*Advogado, jornalista, escritor, foi prefeito de Garanhuns, deputado estadual e secretário de estado | Recife, 26 de janeiro de 1985 | Transcrito do jornal O Monitor).

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