terça-feira, 7 de maio de 2024

Um encontro de saudades

Waldimir Maia Leite "Wadô"

Marcílio Reinaux*

Homem ou mulher, por mais forte que seja, não escapa de momentos transcendentais na vida, que tocando profundamente o coração, levam todos, - até os mais fortes - a umedecerem os olhos com disfarçadas lágrimas. Afinal, quem não é assim? Todos somos. Apenas com algumas diferenças: uns mais fortes e mais "duros" (ou aparentemente duros) outros com a sensibilidade emotiva à flor da pele. Há poucos dias fomos participantes de um encontro que suscitou exatamente esse tipo de comportamento,  onde os integrantes, em meio a uma demorada conversa no abraço final e nos cumprimentos entre os do grupo, tinham os olhos brilhantes, mais humedecidos do que o normal. E nós mesmos fomos os provocadores do sucedido. Contamos para os nossos leitores desses "Retalhos do Cotidiano", já que as pessoas envolvidas são daqui da nossa terra, a Garanhuns dos nossos sonhos e lembranças; esta Enevoada Pérola Fugidia" como dizemos em um poema a ela dedicado. Eis a história:

Bety Reinaux Cordeiro, nossa irmã mais velha (velha por ter sido a primeira da família de Antonio e Francisca Reinaux e apenas por isso, pois continua como nunca, com o espírito jovial e com boa saúde. A idade? Ah! esta não faz mossa na sua vida. Pois bem, a nosso convite veio ao Recife. Rever parentes e amigos após 30 anos de vida em São Paulo, com esporádicas vindas a Pernambuco. Bety estudou no Colégio Quinze, tendo inclusive escrito um belo capítulo do livro comemorativo dos oitenta anos do Colégio, há pouco por nós publicado. No seu tempo de estudante aqui em Garanhuns foi contemporânea de um bando de pessoas, hoje sisudos cidadãos, senhoras respeitadas e muitos que Deus já os levou. Dentre os seus amigos, um foi mais que amigo de Bety. Foi seu namorado. Chamava-se José Yaponan Maia Leite, membro da numerosa família do "Seu Leite", figura das mais conhecidas de Garanhuns. Comerciante, companheiro de nosso pai, Antonio Reinaux Duarte. Não fomos desse tempo. Mas pelo que deduzimos, pelo muito que ouvimos, o namoro dos jovens, foi assim qualquer coisa de "platônico" e coisa nas "altas nuvens", como de certa forma eram os romances de então. Muito respeito, muita polidez, muita educação e o fino trato que presidiam sempre as relações de qualquer casal de namorados da época. Como muitas histórias parecidas, aquela teve um desfecho cruel com a morte repentina de Yaponan, vítima de um esfacelamento do fígado, causado por uma cotovelada de adversário, jogador de futebol em plena partida. Ali mesmo no campo do Colégio Quinze.

O passamento de Yaponan consternou - como não poderia deixar de ser  - toda a cidade, o Colégio Quinze, amigos, professores, colegas, parentes e todos que conviveram com o jovem desaparecido no viço dos anos. Dentre tantos todavia, quem sentiu profundamente a morte de Yaponan, além de Bety, foi seu irmão Waldimir Maia Leite. Por todos estes anos, e lá se vão algumas décadas passadas, ainda hoje o Wadô (para nós, íntimos de Garanhuns, o escritor e imortal Waldimir Maia Leite, será sempre Wadô) continua com a viva memória dos dias da convivência com o irmão no Colégio Quinze, em casa. Dele, por ser mais velho, recebendo conselhos, admoestações e sobre tudo o companheirismo inseparável.

Com a vinda de Bety ao Recife provocamos um encontro a três-mãos, como o Wadô. Fomos jantar e por sugestão dele fomos para o "Bar-Pra-Vocês", onde é ele "emplacado" com a placa: "Bosque Waldimir Maia Leite". Havia trinta anos que os dois não se viam. E ali estavam diante um do outro: Bety e Wadô. Ele o irmão, ela a primeira namorada do Yaponan. Assuntos: o próprio, Garanhuns, as pessoas, o colégio, as professoras Noemi Gueiros Vieira, Almerinda, Dona Cecília. Seu Thompson e os amigos contemporâneos (deles) Mozart Souto, Osires, Polion e Beneon Gomes, Luzanira Maia, Pedro Maia, Alcione Reinaux Maia, Augusto Pinto, Eloisa, Erasto Vitalino, Pipe e Alicinha Dourado, os filhos do "Major Anísio", Absag Gueiros e um desfile de infindáveis nomes que foram citando e comemorando sobre todos. O jantar foi certamente peixe. Mas somente nós comemos e os dois "beliscaram". A conversa não deixava, em um só momento tempo para a comida. Ficamos quase que apenas observando e ouvindo a conversa dos dois, um pouco fora da época deles, muita coisa não sabíamos nem havíamos conhecido tanta gente daquele citada. Falaram da "Vila Maria" a magnífica casa colonialista, de arquitetura das mais autênticas de Garanhuns antiga, onde, por ser a casa do meu avô", como dia Wadô, a ele trazia grande recordações. Ali ainda mourejando com a vida as duas tias solteiras: Letícia e Lourdinha. Por ali, depois do Capitão Thomaz Maia, muitos e muitas gerações da família passaram e viveram. Falaram de Luiz Souto Dourado, há pouco falecido, (uma perda  irreparável para as letras e cultura de Garanhuns); sobre o Parque dos Eucaliptos, sobre as "triscas de bicicleta, sobre Ruber van der Linden que ecologicamente foi o grande preservador na natureza em Garanhuns. Falaram do comércio, dos seus pais, ambos comerciantes: Seu Leite e Antônio Reinaux. Falaram dos desfiles do Quinze de Novembro, das peças de Teatro encenadas por Heloísa e Augusto, e outros; Falaram do frio, da garoa, do contorno serrano da cidade, das serestas com Manoel Teles, cantando coisas maravilhosas. Lembraram Augusto Calheiros, a feira dos sábados, as frutas (pirins, pinha, maracujá-de-macaco, o tomba, carambola); discorreram sobre as festas de fim-de-ano, com as barracas de palha e as meninas de vestido novo e laço de fita na trança. Alguns meninos com o sapato (novo) apertando os pés. Adentrando na noite a conversa terminou com mais uma alegria. Ali perto de nós outra figura de Garanhuns, agregou-se ao grupo: Edna Barros. 

Adentramos na noite, permeada de conversas e risos, voltados para as reminiscências de Garanhuns. José Américo, o doutor escritor paraibano, disse uma frase que ao longo dos últimos anos vem sendo repetida, pela forma com a qual se encaixa maravilhosamente nos anseios das pessoas que amam as suas origens. Diz ele: "Ninguém se perde no caminho da volta". Com efeito ali reunidos: Wadô (Waldimir Maia Leite) Bety Reinaux, nós e mais Edna Barros agregada ao grupo por conta de exclusiva casualidade, estávamos todos, a um só coro e uma só voz e de mãos unidas, numa espécie de caminho de volta a Garanhuns. A propósito de volta e de voltar, quem sintetiza bem, essa indução atávida de volta às origens é Charles Etienne (1778-1845),  em seu escrito "Joconda", Ato II ao dizer: Et I'on revient toujours | A ses premiers amours". (E voltamos sempre | A nossos primeiros amores). Pois ali, estávamos juntos, à volta aos nossos primeiros amores. O amor à Garanhuns, a "Enevoada Pérola Fugidia" (poema e título de um livro, que ainda publicaremos em homenagem à Terrinha).

Bety espantou-se da coincidência de ali encontrar uma conterrânea, Edna Barros, contemporânea sua e de Alcione, da saudosa memória, a quem toda Garanhuns reverencia, como a esposa de Pedro Maia que há pouco também se foi. Quase que a conversa ficava paralela, entre Baty e Edna e entre "Paralelo!, Wadô e este escriba destes "Retalhos do Cotidiano". (A Deus querer e permitir, ainda escreveremos outros livros em homenagem também à Garanhuns com este título: "Retalhos do Cotidiano". Waldimir Maia Leite levou para presentear a Bety, o seu disco, com poemas narrados por ele mesmo. Poemas que falam profundamente da sua sensibilidade poética e de seu "ofício da busca", buscando sempre o que nos dizer a todos nós, seus discípulos e leitores. Nele temos um mestre, consagrado, não apenas pela Academia Pernambucana de Letras, mas um mestre da sensibilidade que aflora a todo o momento. Um poeta da palavra, ou das palavras; do amor, céu, mar, Candeias, Magano, gaivota, Garanhuns, infância, Quinze de Novembro, seu Leite, o Pôr-do-sol de Garanhuns. Poeta que traz na veia o sangue do Príncipe dos Poetas, que foi Arthur Maia. Ele Waldimir tão nosso tão Wadô. Mais Garanhuns em pessoa do que qualquer outra pessoa. Ele que se refugia em uma cela (não vamos dizer o número), do Mosteiro de Garanhuns e fica horas e dias, com os seus nossos pensamentos, envolto pela névoa fugidia da Terra. Ele só, e mais uma cama simples, uma pequena mesa com uma quartinha d'água. Ele  que na simplicidade do traço, lutando contra e com as ideias, deixa transparecer o seu/nosso mundo, quando fala e escreve sobre Garanhuns. Ai juntos, com Edna e com Bety, rememorando o passado. Tão perto e tão distante, tão presente e tão fugidio; tão nosso  e tão de todos. "Et I'on revient toujours". Sim: voltamos sempre. Mas voltamos aos nossos primeiros amores. Garanhuns foi nosso primeiro amor. Mas nosso primeiro alumbramento, não foi a moça nua que Manuel Bandeira viu tomando banho no rio. Foi a menina de trança subindo a ladeira do Santa Sofia. Quando? Só o tempo sabe.

Bety, elegante de finas maneiras e fino trato. Uma dama na expressão maior da palavra. Causou admiração a Wadô e a Edna, pela sua jovialidade, encobrindo sabiamente o peso dos anos, como poucas pessoas sabem fazê-lo. Bety, aprendeu e ensina para nós, preciosas lições sobre o "mal-estar da terceira idade", como evitá-lo. Aliás ela transforma o mal, em bem-estar da terceira idade, mostrando como se pode viver, com idade avançada superando os problemas naturais que cercam a todos, transformando-os em condições benéficas de sua própria vida. Para ela, o mundo é sempre novo. Descobre em cada coisa um novo e sobretudo a mensagem da Natureza e do Criador. Sem pieguismos, vê na flor algo mais, que não vemos. Vê nos céus mais azuis e limpidez do que vemos; vê na paisagem a presença iniludível do poder e da mão de Deus, que nem sempre vemos. Vê nas pessoas, o lado bom e as virtudes que têm que nem sempre os outros observam. É perspicaz, observadora, amiga conselheira. Uma pessoa que transmite a alegria e a felicidade a todos que a cercam, com sua personalidade forte e marcante. Bety é tudo isso. E foi isso tudo que sentiu o escritor, o amigo, o poeta Wadô. Ele tão forte, tão homem, tão poderoso nas palavras, nos gestos, no dizer e no escrever. Agora ali sucumbindo diante da saudade; ante os dias tão distantes a pequena escultura do jardim de menino em frente a sua casa. Com Bety, Wadô e Edna Barros tivemos um encontro de saudades. Saudades nossas que se entrecruzaram, com as  saudades de Garanhuns. (*Jornalista e escritor | Recife, 04 de abril de 1987 | Transcrito do jornal O Monitor).

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