terça-feira, 16 de abril de 2024

Réquiem para José Cardoso

José Cardoso da Silva

Texto de Celso Rodrigues 

Ele foi forte e coerente, amante de Garanhuns, até a morte

Jogava nos meus olhos a suntuosidade das flores de Garanhuns. E não abria um diálogo que servisse a quem desejasse contestar a sua verdade. Eram as mais belas flores do mundo - e acabou. Por acaso, não enxergava eu que as flores, entre incontáveis méritos, sedimentavam nele o amor ao povo e à terra de Garanhuns? Entendia uma maioria que sofria e abafava seu choro em noites frias, em lençóis, ou escondia a fome do cotidiano na perspectiva de um provável amanhã, risonho e feliz.

Ele significava, na medida do possível, um elo a olho nu entre os anseios do protesto dessa gente e a necessidade renovada e sem recuos diante de uma minoria arrogante, mesquinha e usurpadora do grande poder e da prosperidade que, sob o vento e as chuvas, nascia para todos.

Foi numa recente manhã de muito frio que o reencontrei em Garanhuns. Disse-lhe que, na noite anterior, sentira as minhas mãos carregadas de neve e de saudade; e no despertar da manhã a mulher que, sob os meus ombros descansara os longos cabelos brancos, oportunamente declamara alguns versos de Valdemar Lopes sobre "essas mulheres de vestido preto/têm névoa de saudades em seus olhos". Tanto  ela quanto eu, não escondíamos  olhos noturnos.

Via-se no velho amigo o contentamento de um vitorioso. De mim conseguira, afinal, ouvir a declaração solene, há muito pedida, sobre o quanto representa uma noite em Garanhuns, sobretudo em ciclo de ilusões.

Sempre ocorre, nessas horas, um espontâneo abraço, marcando o reencontro entre os que se entendem. Pois tão perto, eu e ele, um do outro, e tão longe, ambos em face do angustiante dia-a-dia brasileiro.

- Vim para uma conversa aberta, como nos anos que se foram. E a saúde? - perguntei-lhe.

- Nunca vi mais saudável e mais forte.

E concluiu:

- Saudável fisicamente. Politicamente forte e eleitoralmente mais forte ainda.

De fato, um aspecto que agradava naquele sofrido rosto mestiço e ainda jovem. Nenhuma sombra das raízes do câncer.

Bem posto num conjunto cinzento e o terraço de sua casa cheio de militantes do seu partido, todos se concentrando no que ele transmitia, com rapidez e facilidade. Se politicamente - desafio-me - eu não acreditava nas suas possibilidades como candidato a prefeito de Garanhuns, que procurasse interpretar as pesquisas.

Vi as pesquisas. Ele na frente e, na ponta, os adversários de todas as campanhas. Não me enganara o prefeito Ivo Amaral:

- Se ele disputar, dificilmente será derrotado.

Testemunho valioso, isento e correto, partindo de quem partira. Ivo Amaral, acredito, só por fidelidade à sua legenda se assumia obrigado a enfrentá-lo nas urnas. Com todos os riscos.

Era de tal ordem sua confiança no povo, que nem de leve pensava em dinheiro para enfrentar a dura batalha que se aproximava.

- Já me vejo nas ruas. Tenho um passado e um presente. Busco o futuro. Isso se traduz na credibilidade da minha candidatura.

Não se tratava, com efeito, de um gênio. Mas, como as árvores em extinção, um filho do povo em ascensão política. O golpe de 1964 - jamais se repita - causou-lhe transtornos de toda natureza. Diminuiu as estocadas do seu coração. O que nunca o desmotivou para prosseguir no bom combate de sua causa. Na tribuna e nas ruas um só homem, integral, cujos discursos se afinavam com os princípios da liberdade, da justiça e da democracia. A coerência em briga com a mistificação e a torpeza, com a opressão e a violência. Então, recorde-se como malditos, os dias de uma ditadura que trouxe, como consequência e sem contestação, o hoje de falta de vergonha que mata de vergonha os homens deste País.

Foi-se meu amigo José Cardoso.

Quando vier outra noite de neve em Garanhuns e a quem contar que a mulher presente ousou declamar versos de Valdemar Lopes? Meus ombros se mostram exauridos. Onde e qual o amigo para acordar e juntos choramos saudades nunca perdidas? Outros usam outra linguagem no reencontro e na despedida, mas a minha  linguagem não muda: me vem a saudade da noite, das noite de vigílias sentimentais, noites sem abismos, no entanto. No embalo das coisas sagradas, indispensáveis.

Não sabia, Zé, que aquele abraço tão longo era o abraço de despedida. Digo-te agora: as rosas de Garanhuns são mais belas do mundo. Qualquer hora dessas vou espalhar algumas sobre o teu túmulo, fazendo-te um convite:

- Acorda, Zé. É primavera em Garanhuns. As flores já nos olham nessa manhã consentida. Linda, perversamente linda. De mil esperanças interrompidas. (Transcrito do Jornal do Comércio de 10 de maio de 1992).

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