sábado, 4 de maio de 2024

Ser feliz, ou parecer?

Garanhuns Antiga/Avenida Santo na década de 1940

Marcílio Reinaux*

"Querer ser o que se é... é essencial". Gilberto Amado (1887-1969)

Com premissa do pensamento acima, do Escritor Jorge Amado, uma das coisas essenciais da vida é ser. Mas, claro que este ser, deve ser com autenticidade, sem utopia e sem meandros, devendo as pessoas mostrar-se por inteiro, para ter legitimidade de caráter na sociedade na qual convive. Aquele escritor ainda lembra que: "querer ser mais do que se é, é ser menos".

Tomando certas colocações como indicativo de vida, lembro de tempos passados, lá pelos idos da minha infância aqui em Garanhuns. Àquela época (pelos idos da década de 1940 e começo da seguinte) parecia que eu , ou melhor, a minha família, tinha tudo ou quase tudo para uma vivência regular de uma família da classe média. Meu pai comerciante com loja de peças de automóvel na Avenida Santo Antônio (Agência Reinaux) o único do ramo, ao que parecia, era "rico". Um dos poucos automóveis circulando pela cidade naquela década era dele.

Em uma das minha férias indo ao Sítio Mulungu, em Canhotinho, observei e agora me lembro muito bem, da vida das pessoas naquele lugar tão simplório e quase pobre, quanto encantador. Lembro da casinha do Seu Venâncio, o vaqueiro morador com sua família. Lembro os vestidinhos de chita das suas filhas, as "percatas" (alpargatas) dos filhos, o pote de barro com água, a mesa rústica, o colchão de palha, o telhado com frestas, o candeeiro de querosene, a toalha xadrez da mesa, a excepcional e gostosa comida que Dona Palmira, a esposa dele fazia. Um ambiente telúrico e acolhedor. Ali passei dias inesquecíveis de muitas férias, transbordadas de felicidades incontidas, que sempre relembro. E aprendi. Sempre aprendi muito com aquela gente rude, simples, mas de uma vivência de profundo respeito, de excepcional postura e caráter firme. Palavra firme também.

Vale dizer que eu chegava ao sítio, com ares de "rico" (pelo menos querendo parecer ser). A chegada em Canhotinho no trem, depois o carro de boi, tangido pelo seu Venâncio. Eu trajava roupinha de menino de cidade, com ares de filho de "Barão", sapatinho de verniz e uma malinha de couro com fivelas douradas. Eu acho que gostava de "olhar as coisas por cima", com ar de "autoridade", parecendo ser, sem ser nada. Ser o que ?

"Chegou Marcílio, o filho do Seu Antonio", diziam. Ali diante da simplicidade do ambiente e das pessoas, inclusive dos meninos da casa e da redondeza, aos meus olhos, tudo parecia pobre. E era. Eu via tudo, observava tudo, perguntava muita coisa, que as vezes sentia  que as pessoas se aborreciam em me responder. E o que vi tudo ficou na lembrança. Ou me pergunto: o que aprendi? Várias lições.

Eles tinham quatro cachorros, grandes, bonitos. Eu tinha um "vira-lata magricela, chamado Quísse". Eles tinham belas noites estreladas e vez por outra com lua belíssima. Eu tinha a luz elétrica, a partir das seis da noitinha. Eles tinham ao redor da casinha, apenas pequenas e toscas cercas. Não tinham muros, nem grades, nem portões. Nossa casa (de rico) tinha muitas grades e nosso quintal chegava a ter o muro alto. Quase uma prisão. Eles tinham vizinhos que moravam lá bem distante perto das montanhas. A minha casa era conjugada, dividindo paredes com vizinhos. Eles tinham comida deliciosa, "temperada" com cheiro do fogão de lenha e a perícia de Dona Palmira. Nós na minha casa, tínhamos os alimentos comprados - alguns já - prontos.

Na minha casa tinha uma radiola de manivela e um rádio de válvulas (objetos de "ricos" da época), nos quais escutávamos  músicas em disco de acetato e o Reporter-Esso na época da Segunda Guerra Mundial. Eles - em termo de música - tinham aquela mais autêntica e de beleza comovente: o cântico de muitos pássaros, formando com as cigarras um coro especial. Também como "música" eles tinham o mugir da vacada, (a novilha Princesa), o berreiro dos bodes e carneiros ou mesmo o relinchar da égua "Mariola", que se completava com o cacarejar das galinhas. Mais ainda: havia um pavão, que vez por outra "fazia um solo", com seu grito estridente: "Keó, Keó". À noite mais músicas com piados da "Peitica", do Bacuráu, ou de corujas e os sapos, grilos e miríades de sons dos pequenos seres das noites nos sítios. Assim as noites e os dias no Mulungu, eram completos de uma sinfonia interminável de beleza renovada e sempre surpreendente. Quase nos fundos da casa, o encantador riacho Mulungu (afluente do Rio Canhoto), de águas claras, onde os filhos da Dona Palmira tomavam banho, (e as meninas também de vestidinho que colava no corpo). Piabas, Cundundas e peixinhos reluzentes podiam ser vistos. Na nossa casa moderna, em Garanhuns havia um banheiro com um chuveiro grandes. Melhor era tomar banho de mangueira no jardim.

O Venâncio tinha espingardas apenas para caçar bichos do mato. Percebi desta forma também, que a proteção dele, da família e do  Mulungu, estava resguardada por Deus e pela amizade e confiança recíproca com os vizinhos.

O Venâncio sim era rico e não eu, que queria parecer

Daquela vivência e convivências temporais do Mulungu, vi como era e como é importante ser o que se é. E não parece ser o que não somos. Por isso minhas férias eram muito queridas e sempre desejadas a cada ano. Aquela família era sim, rica na singeleza da vida, sob os céus, o sol, ao lado da mata verde ensombrada, vendo e cuidando dos animais. Claro que lutando pela sobrevivência. Mas uma vida com a grandiloquente Natureza, ao redor deles, como uma incomensurável herança muito rica, legada por Deus. Sendo realmente o que pareciam: felizes. 

*Marcílio Reinaux, é escritor, membro da Academia de Letras de Garanhuns.

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